Sinal dos tempos modernos, ou talvez não, dou por mim a refletir sobre a Verdade ou sobre a miopia que sobre ela se instala. A mitomania caracteriza-se pela compulsão para mentir de forma recorrente e patológica. Não se trata de um simples ato isolado de falsidade, mas antes de um comportamento repetitivo que, em muitos casos, ultrapassa a vontade consciente do indivíduo, levando-o a construir narrativas ficcionadas acerca de si e da realidade. Embora a psicologia contemporânea considere a mitomania uma perturbação que requer intervenção médica e psicoterapêutica, a reflexão de Santo Agostinho (354-430 d.C.) sobre a mentira permite aprofundar a dimensão ética e espiritual associada a este fenómeno.
Santo Agostinho advoga nos tratados De Mendacio e Contra Mendacium que a verdade é um atributo divino e, nesse sentido, um bem supremo que não deve ser violado. Entende-se que todas as formas de mentira se traduzem numa cisão entre o indivíduo e o princípio transcendente, pois introduzem na consciência uma quebra de harmonia com a ordem criada por Deus. Se aplicarmos este critério agostiniano ao quadro da mitomania, observamos que a compulsão para mentir implica um afastamento contínuo dessa verdade transcendente. O sujeito mitómano não apenas oculta factos, mas constrói uma realidade paralela para obter validação externa, na medida em que tenta manipular a perceção da realidade em benefício próprio.
Contudo, importa reconhecer que do ponto de vista clínico a mitomania não nasce meramente de uma escolha moral livre. Muitos indivíduos que sofrem desta condição experimentam a ansiedade, o medo do fracasso, a baixa autoestima ou, por vezes, traços narcisistas que os instigam a criar ficções como forma de compensação psicológica. Nesse sentido, a abordagem contemporânea inclui estratégias de psicoterapia, nomeadamente orientadas para a reestruturação cognitiva, bem como a exploração das causas emocionais subjacentes (por exemplo, dinâmicas familiares ou experiências traumáticas).
O pensamento de Agostinho, embora enraizado num contexto teológico, enfatiza a necessidade de retornar à verdade como fonte de autenticidade e de reconciliação com o ser divino. Para o mitómano, este “regresso à verdade” não passa somente pela renúncia voluntária à mentira, mas também por um processo de autoconhecimento e de procura de ajuda especializada, de modo a ultrapassar os impulsos inconscientes que conduzem à fabulação. Só então será possível restaurar, paulatinamente, a integridade na relação consigo próprio, com os outros e, do ponto de vista agostiniano, com a verdade derradeira representada por Deus.
Em jeito de conclusão, a mitomania configura um desafio simultaneamente clínico e moral. Se, por um lado, exige intervenção especializada para gerir e tratar a compulsão pela mentira, por outro lado, recorda-nos, à luz de Agostinho, que o ser humano, feito à imagem de Deus, encontra na verdade o seu “lugar natural”. A tensão entre a dimensão patológica e a dimensão ética realça a complexidade do fenómeno e a importância de uma abordagem integral, que articule a ciência psicológica com a reflexão filosófica e teológica. Tal como Paulo Freire pontua, toda a forma de dissimulação ou desonestidade comunicativa, que ofende a relação dialógica, é incompatível com o ideal de educação crítica e libertadora que o autor defende, pois impede o florescimento do que ele chama de “inédito viável”, o espaço de realização coletiva que emerge quando os indivíduos livres e críticos cooperam na construção do conhecimento e na transformação do mundo. Para “ser mais” não basta “parecer”.
