Lideranças pedagógicas em contextos emergentes de autonomia e flexibilidade curricular.

Por muito que se pretenda veicular no currículo e no seu mais recente enquadramento que o apadrinha com a autonomia e a flexibilidade, a necessidade de desvelar outras possíveis formas de construção da escola, impele-nos a consubstanciar, de igual forma, o lugar do professor no discurso da descentralização da escola, das práticas pedagógicas e quiçá da reconfiguração de um perfil docente para o século XXI.
O Decreto-Lei n.º 55/2018 de 6 de julho manifesta, no seu conjunto articulado de 23 princípios orientadores para a conceção, operacionalização e avaliação das aprendizagens do currículo dos ensinos básico e secundário, um sentido de autonomia para o desenvolvimento curricular que embora alimente, como processo, a (des)construção do perfil de aluno à saída da escolaridade obrigatória, evidencia, possibilidades várias de empoderar os instrumentos de planeamento curricular, bem como as dinâmicas pedagógicas ao nível da escola.

Todavia, se o referido processo, tende a colocar o acento tónico na garantia de que todos os alunos, independentemente da oferta educativa e formativa que frequentam, alcancem as competências definidas no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (art. 6.º, 1.) é, não menos verdade, que essa finalidade coloca, igualmente, a tonicidade das práticas no exercício pedagógico do professor. Se, por um lado, o Decreto preconiza a ascensão de uma perspetiva matética no currículo, no sentido que lhe é dado por Comenius e mais tarde por Seymour Papert, ou seja, a arte do discente ou a arte de aprender, respetivamente, implicando os alunos na construção socio-crítica do seu percurso académico, por outro lado, o papel do professor é redimensionado tanto na construção faseada da autonomia da escola, como na redefinição da sua profissionalidade que traz consigo questões éticas e deontológicas diferentes.

De facto, de todos os temas epopeicos da política educativa, aquele que, maior espetáculo tem proporcionado à escola é o que a coloca em debate com os processos de autonomia: ora porque desejamo-la, ora porque é escassa, ora porque é a partir dela que a escola se emancipa, ora porque é na sua construção que os cenários de aprendizagem se transformam, porque as aprendizagens se glocalizam[1] e se revertem em significados, ora porque nos revemos como possíveis e necessários autores da nossa escolaridade.

Este exercício de uma autonomia construída embora articulada num exercício decretado de gestão até 25%, corresponsabiliza, os professores a pensarem de outro modo a sua arte de ensinar, isto é, a sua didática. “A gestão integrada do conhecimento, valorizando os saberes disciplinares, mas também o trabalho interdisciplinar, a diversificação de procedimentos e instrumentos de avaliação, a promoção de capacidades de pesquisa, relação, análise, o domínio de técnicas de exposição e argumentação, a capacidade de trabalhar cooperativamente e com autonomia” (Decreto-Lei n.º 55/2018, Preâmbulo) são, manifestamente, desafios ao perfil do professor na (des)construção do Decreto sobre a Autonomia e Flexibilidade Curricular que o coloca perante a arte de aprender. O professor converte-se em sujeito da sua própria aprendizagem e na transformação do seu projeto político-pedagógico desvela-se à escola e aos alunos como um ator, também ele na busca de conhecimentos, capacidades e atitudes essenciais à escola do século XXI.

Consideramos, deste modo, que o currículo, o pensamento crítico e a criatividade, embora sejam dimensões de análise que colocam o aluno no centro da sua (des)construção, também comprometem o professor ao reconhecer, num discurso freiriano, que a mudança é possível, mas dela precedem a corporificação das palavras pelo exemplo, a criticidade do ensino-aprendizagem e dos sentidos estético e ético da sua prática. Paralelamente a uma arte de aprender que coloca o aluno no centro do processo de aprendizagem, haverá, no processo de ação-reflecção da ação político-pedagógica, a assunção de uma arte de aprender de um professor em formação contínua, em aprendizagem ao longo da vida. O professor neste cenário político deve assumir-se com um líder pedagógico o que o implica, nas palavras de Kouzes e Posner (2009), a alicerçar a sua prática a partir de cinco estratégias de liderança: “mostrar o caminho; inspirar uma visão conjunta, desafiar o processo, permitir que os outros ajam e encorajar a vontade” (p. 36).

O professor que se assuma um líder pedagógico na perspetiva que nos é apresentada por Kouzes e Posner (2009) amplia as possibilidades de concretização dos processos de autonomia e flexibilidade curricular que a política educativa preconiza no Decreto-Lei n.º 55/2018 de 6 de julho. Neste cenário procurámos introduzir no debate sobre o Perfil do Professor em prol dos processos pedagógicos que deverá desenvolver para o cumprimento do Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória, um conjunto de saberes que o comprometem com o exercício de uma liderança e de uma prática pedagógica inclusiva, flexível e democrática.

Posto isto, a arte de aprender que se apresenta ao professor, no exercício de uma prática pedagógica que surge reconfigurada pelas novas orientações curriculares para os ensinos básico e secundário, coloca-o no centro de um processo de investigação-ação participativa e reflexiva, de autoavaliação, que se alicerça no reconhecimento de que “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (Freire, 2009, p. 23). Este é o saber que deverá nortear o perfil do professor à saída da formação inicial e o acompanhar no seu ciclo de vida enquanto profissional da educação.
Este saber coloca o professor como ator social que reconhece a sua incompletude como condição necessária ao trabalho colaborativo, à relação com os outros e à reconstrução da sua prática pedagógica. Apela-se à formação contínua de um professor que se assuma como conhecedor, sabedor, culto, informado; sistematizador, organizador; criativo; comunicador; questionador; crítico, analítico e responsável, autónomo, visando a mobilização de múltiplas literacias e o desenvolvimento de valores e competências, tendo por base uma formação centrada na pessoa e na dignidade humana.

Como nos afirma Freire (2009), “nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo” (p. 26). Há, neste sentido, um desvelar de uma prática reflexiva do professor que vê na arte de aprender um exercício epistemológico que valida uma teoria do conhecimento onde “quem pensa certo” sabe “que as palavras a que falta a corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem” (p. 34). Dicotomizar a relação ensino-aprendizagem, colocando de um lado o professor e do outro o aluno, é empobrecer o potencial da relação pedagógica, dos processos de autonomia construída e o sentido ético da ação pedagógica. Logo, “a boniteza da prática docente se compõe do anseio vivo de competência do docente e dos discentes e de seu sonho ético”, sendo que, “não há nesta boniteza lugar para a negação da decência” (Freire, 2009, p. 95).
A arte de aprender, que se corporifica na ação de professores e alunos, nos mais diversos ambientes de aprendizagem, formais ou não formais, compromete-se na autenticidade dos sentimentos, nos processos de ressonância ou de contágio (Tolstói, 2017) e nas redes de comunicação que se criam. Esta arte de aprender tem por isso uma função moral e social (Tolstói, 2017) que se torna essencial ao desenvolvimento de um Perfil de Aluno de base humanista.

Retomemos a perspetiva anteriormente mencionada, no âmbito das transformações pedagógicos do processo de autonomia e flexibilidade curricular, que coloca o professor no centro de um processo de investigação-ação participativa, reflexiva e de autoavaliação. Creio que os professores muito têm feito para que as escolas se apresentem como comunidades de aprendizagem significativas. Não concebo uma escola democrática que permita outra visão que não esta que inclui e valoriza as diferenças. E isso faz-se, essencialmente, por meio de uma cultura colaborativa que nos coloca como líderes pedagógicos. Sergiovanni (2004) num brilhante livro sobre “Novos caminhos para a liderança escolar” partilha o seguinte: “A alma da cultura escolar é aquilo em que as pessoas acreditam, os pressupostos da base do funcionamento da escola e o que se considera ser verdadeiro e real” (p. 23). Esta cultura desenvolve-se no quotidiano da escola e alimenta-se do sentido de pertença dos seus atores, que são múltiplos e essenciais (diretores, professores, alunos, funcionários, comunidade). Não creio que possamos adentrar nos processos de autonomia e flexibilidade curricular se não nos comprometermos em verdade com os seus princípios. Eles não são de agora! Poderíamos recuperá-los amplamente dos debates da Comissão de Reforma do Sistema Educativo (1986) ou das narrativas que desde os anos 80 e 90 do século XX têm estruturado a política educativa em Portugal, mais concretamente os que originaram os Decretos-Lei 43/89 de 3 de fevereiro, 115-A/98 de 4 de maio, 6/2001 de 18 de janeiro, 75/2008 de  22 de abril ou ainda o Decreto Legislativo Regional 21/2006/M de 21 de junho, onde os cenários da autonomia e da administração das escolas foram debatidos.

Em ambos os cenários legislativos que movimentaram as escolas, tem perdurado, umas vezes num registo mais acentuado do que noutros, uma secundarização do papel dos professores na liderança das escolas e na sua assunção crítica enquanto atores reflexivos e necessários à construção dos ambientes políticos e pedagógicos que se corporificam na escola. Sergiovanni (2004) coloca o professor como “ponto fulcral para o melhoramento das escolas a longo prazo”, argumentando que “os princípios construtivistas de aprendizagem e ensino, que estabelecem uma base científica para a tomada de decisões acerca do que é melhor para os alunos, deveriam ser também aplicados às decisões relativamente ao desenvolvimento [profissional] dos professores” (p. 15). Estamos perante uma escola que se constitui ela própria um Centro de Investigação (Sergiovanni, 2004), um espaço multidisciplinar de aprendizagem que nos implica a corresponsabilizarmo-nos com o projeto educativo da escola, que nos chama a desenvolver um trabalho de natureza interdisciplinar e de articulação disciplinar que se fortifica na dinamização de Equipas Educativas.

Uma larga maioria dos professores sempre se apresentou no exercício ético das suas funções como agentes de transformação do currículo e da escola. Sempre nos assumimos como agentes de transformação do currículo. Aliás, não há prática pedagógica democrática que não chame a si essa competência! Tem, no entanto, faltado um pacto educativo mais amplo. Um pacto que estabilize o terreno da ação das escolas e que permita ao seu projeto o tempo necessário para a produção de resultados. Se à escola e em particular aos professores lhes é exigido uma ação concertada e corresponsável, à política educativa e aos seus atores principais é exigida uma ação coesa, que não se construa na imediatez partidária, no discurso panfletário e na visão acéfala que se afasta dos objetivos reais da escola e da educação.

Entretanto, neste debate sobre a autonomia e a flexibilidade curricular não é viável pensar que poderemos organizar a escola como o único espaço de conhecimento e de aprendizagem. Não é viável aglutinar entre os seus muros o que de essencial a aprendizagem comporta. Ela, a aprendizagem, se corporifica em múltiplos espaços da sociedade. Cabe-nos saber articulá-los. Cabe-nos olhar para o território como um espaço continuum da escola. Todavia, a concretização dessa autonomia e flexibilidade curricular não se verifica se à escola não for concedida a capacidade de decidir sobre os seus recursos, pois a ideia de que é possível fazer diferente com os recursos que estas já possuem é um pressuposto que desvirtua o princípio da equidade pedagógica, pois bem sabemos que não partimos todos da mesma meta, isto é, “[a] prática da equidade terá (…) de considerar as pessoas e os contextos concretos se quisermos ativar a vontade de aprender e dotar de sentido as propostas de aprendizagem que fazemos aos nossos alunos” (Alves, 2017, p. 67), que fazemos aos nossos professores e às nossas escolas.

Se alguns dos diretores de escola (participantes no PAFC) do 1.º Ciclo do Ensino Básico (da RAM) que questionei sobre o processo de autonomia e flexibilidade curricular apontaram a resistência de alguns professores à mudança; a escassez de tempo para a planificação, a reflexão e a avaliação; e a falta de acompanhamento na fase inicial deste processo, é facto que foram muito precisos nas referências às mais-valias desta reorganização curricular, de onde se destaca o trabalho colaborativo entre professores; a integração de projetos e a partilha de horários entre diferentes áreas disciplinares; a melhoria na organização e gestão dos espaços pedagógicos da escola; a mobilização de novas metodologias e estratégias de ensino e aprendizagem que encorajam o recurso a projetos e à resolução de problemas contextualizados na realidade local dos alunos, bem como o reforço de áreas associadas à Educação Artística, como aglutinadoras de intervenções interdisciplinares, por exemplo.

Creio que as novas formas de organização da escola que o Decreto-Lei n.º 55/2018 retoma são estratégias para construir uma outra escola possível, isto é, mais inclusiva, mais democrática. Contudo, ela não resiste na ausência de um pacto educativo nacional. Ela não se estabiliza e aprofunda se a este debate não associarmos outros em estreita ligação com a avaliação das aprendizagens, com o acesso ao ensino superior e com o estatuto da carreira docente. Ela não se constrói na ausência de trabalho colaborativo. Ela não resiste no isolacionismo das práticas. Ela não se fortifica e desenvolve se não nos implicarmos nos seus processos de transformação. Isto nos chama para a ação crítica e concertada, que se viabiliza em comunidades de aprendizagem profissional onde os professores se assumam como líderes da transformação e como atores participativos e reivindicativos do seu tempo e lugar na história da política educativa em Portugal.

[1] Neologismo, que aglutina o global e o local e que se apresenta como expressão relativa à presença da dimensão local na construção e dinamização de uma cultura global.

Referência:

Fraga, N. (2019). Lideranças pedagógicas em contextos emergentes de autonomia e flexibilidade curricular. Revista Diversidades, 54, 11-15. ISSN: 1646-1819. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/336073028

Nuno Fraga
Universidade da Madeira
Centro de Investigação em Educação